Nascida nos anos 20, muita coisa já vivida, semana de arte moderna, segunda gerra e gerra fria. Vinda de uma origem patriarcal, filha de conhecidas figuras de Dona Inês, Município da Paraíba.
Aprendeu o ofício de costureira, fazendo até vestidos de casamentos, muitas vezes, à mão por não ter o advento da máquina de costura manual. Era de fato uma obra de arte artesanal.
Não se sabe ao certo como conheceu seu esposo, já falecido, José Henrique Gomes, meu avô, mas sabe-se que se tratava do filho de um dos homens mais ricos da atual microrregião do Curimataú Oriental, natural de Araruna, minha Cidade de batismo. Suas terras eram tão extensas que um trabalhador saía da casa grande antes do sol nascer e chegava no poente, por ter percorrido parte da propriedade à pé, para se ter uma ideia, a fazenda era mais ou menos equivalente as terras da descendência de Zé Maranhão. Zé Henrique, era um rapaz vistoso, vaqueiro experiente e trabalhador, frequentava os diversos forrós das redondezas, gostava de tomar cachaça e mulher bonita era sua escolha primordial. Mas como uma promessa, dizia para todos que poderia namorar com quem fosse, mas só se casaria com Hilda Teixeira de Lima, filha de "Paiom" e Mãe Santa. E cumpriu! Após curtir sua juventude, foi buscar a mão da moça para quem prometera.
Celebrou-se o enlace religioso e se tornaram marido e mulher. O nome da família é algo curioso, Hilda Teixeira Gomes, nome de casada, e José Henrique Gomes ou até José Henriques Gomes, pois descende da família Henriques e não apenas um nome próprio Henrique, onde tiveram, respectivamente, Geraldo Henrique de Lima, Maria do Socorro Henrique, Teresinha de Jesus Henrique, minha mãe, e Maria de Fátima Henrique. Como seu coração de mãe era muito grande, criou os filhos do seu irmão que não tinha condições como seus, Francisco de Pontes Teixeira e Maria Gorete de Pontes Teixeira.
Vivente num ambiente patriarcal, mesmo com toda repressão do momento histórico e do regionalismo nordestino, conseguiu certa liberdade, continuando a exercer seus ofício de costureira e até foi mais ousada, casando no civil com meu avô, fato esse que impediu que o mesmo vendesse todos os bens que possuía, pois, infelizmente, quando se embriagava, passava terras e cabeças de gado para terceiros por preços diminuídos. E com a certidão de casamento civil necessitava da assinatura da minha avó, que por sinal era alfabetizada, para as ditas "vendas", uma mulher a frente do seu tempo.
Fui, até meu primo Gustavo nascer, o neto mais novo, e minha prima Gilka, a neta mais nova. Por ter sido o último, até o fim da vida do meu avô e por grande parte da vida da minha avó, recebia um carinho todo especial por parte deles, foi aí que meu avô sempre me chamou de caroncinha, não sabendo até hoje o significado desse apelido, mas faz alusão, eu acho, a um dos significados do nome em si, que é máscara de papel colocada nos alunos mal comportados (coisa que eu era) postos em castigo. Sentia que minha avó queria colocar um apelido em mim e não achava, foi quando eu tirei uma foto vestido de marinheiro na escola e a levei para a casa dela para colocar na sala de estar e toda pessoa que chegava lá, ela enchia o peito para dizer que era o neto dela, o seu marinheirinho. Foi com enorme carinho que sempre gostei desse ato de amor que ela sempre me deu.
Quando ia para sua casa passar as férias escolares, momentos inesquecíveis na minha vida, sempre me bajulava e, como qualquer avó, colocava um prato de comida para servir três pessoas para eu comer, já catucava minha mãe dizendo que não iria conseguir tanto e me dizia que se eu não comece vovó iria ficar com raiva, pois as duas concordavam que estava muito magrinho (coisa que não mudou até hoje), e eu passava vários minutos para comer, deve ser por isso que como devagar até hoje, e quando terminava, já não queria ver comida por uma semana. Aí chegava vovó, olhava para o prato fundo e dizia, esse menino tem uma fome trinchete, ou seja, trinchete era uma espécia de faca amolada que cortava muito rápido, "comia muito", e era algo contraditório, mas ao mesmo tempo cômico. Quando estava preste a voltar de férias recebia um sabonete e uma pasta de dentes, aposto que a maioria aqui de leitores já recebeu. Ela também tirava dez reais do bolso e dizia que era para eu comprar "confeito". E era a coisa mais feliz da minha vida, coisa que eu tenho uma saudade imensa, porém, ainda hoje repetida pela minha tia avó e irmã de Hilda, Isabel, conhecida por Zabé, e pela minha madrinha de consideração Dôra. Além de ter tido vários outros momentos únicos e que tenho bastante saudade e nostalgia. Lembro dos cheiros que eu dava no pescoço dela e ela ficava com cócegas e com raiva, dizendo: sai, menino abusado! Era muito bom aquele tempo.
Acontece, que sofria de vários momentos de isquemia, o que preocupou, principalmente minha tia Socorro, e também os outros cinco filhos, o que trazia as visitas periódicas dela para João Pessoa. Era uma forma de matar a saudade daquela que só veria nas férias e para proporcionar um tratamento adequado para esse mal. Por volta dos seus 88 anos, em uma de suas visitas, de repente, perdeu grande parte de sua consciência, passando a não conhecer todos que chegavam tanto na casa de sua filha quanto quando estava na sua casa na Serra do Sítio, povoado onde fica sua casa e seu sítio. Estava então com o chamado mal do alemão Alzheimer.
Coisa incrível, todas as vezes que eu chegava para vê-la me conhecia e dizia: Deus te abençoe; quando lhe pedia "abença". E em uma dessas visitas me disse as palavras mais sublimes da minha vida (devo confessar que quando cheguei nesse ponto, a emoção me tomou conta), ela me disse: vá meu filho, ser feliz e curar as chagas dos doentes. No entanto, quando era pequeno falava raramente que queria ser médico e avivou ainda mais o sonho que sempre tive. Na mesma hora lhe dei um beijo inigualável e disse que fosse feita sua vontade.
Já prestes de completar 90 anos de idade, eu e minha prima Rafaella, tivemos a ideia de fazer uma homenagem para ela, editei um vídeo com fotos de vários momentos da sua vida e minha prima gravou uma mensagem falada, foi apresentado no 90º aniversário, mesmo que ininteligível para ela, mas marcou para nós o que seja conseguir chegar a essa idade.
As coisas foram se agravando dia a dia, e para o sofrimento abandona-la, nos deixou esse domingo, depois de passar dias ruins no CTI do hospital.
Foi conduzida para sua Cidade natal, Dona Inês, ou melhor, Serra do Sítio, onde foi velada na casa de tantas lembranças, onde eu e outros familiares jogamos água benta pelo padre que ali estava, molhei e joguei em sua cabeça e depois ao coração, representando a razão de uma mulher forte e marcante e o amor que sempre trouxe para todos. foi então levada para a cidade. Ajudei a levar caixão, joguei areia no caixão e fiz meu último adeus. E foi na certeza de que ela sempre estará presente nas nossas lembranças. Diz um ditado que quando o defunto é ruim, falta areia para enterrá-lo, com minha avó sobrou terra que eu medi quase dois palmos. Estava cheio o cemitério, familiares, conhecidos, amigos, inclusive uma amiga de infância.
São nesses momentos que entendemos que tudo tem um motivo na vida e aos poucos ela vai nos mostrando o seu sentido, de quem precisa de nós por perto e de quem precisamos junto à nós.
Vovó, para sempre te amarei!